quatro minutos depois das sete

hora de partida para outro lado qualquer...

terça-feira, fevereiro 21, 2006

Um outro ponto de vista

Ainda a propósito das caricaturas.


"As Nossas Caricaturas"

(Publicado na Visão em 16 de Fevereiro de 2006)

"Verdadeiramente só são caricaturas as que fazemos de nós próprios, ou seja, no seio de uma dada sociedade que se imagina como de pertença comum. É de sua natureza, não serem tomadas literalmente e, portanto, não ofenderem ou não ofenderem ao ponto de quebrar o que temos em comum. As caricaturas que fazemos dos "outros", como não partem da pertença comum, correm sempre o risco de ser tomadas literalmente e ofenderem quem é caricaturado. Quanto maior for a distância entre "nós" e "eles" criada pelos traços da caricatura – por exemplo, os traços de um deus que eles veneram piamente e nós consideramos um fanático terrorista – maior é o risco que tal aconteça. E, quando tal acontece, não se pode esperar que a ofensa seja expressa segundo as nossas regras. Para que tal acontecesse, era preciso que estivéssemos "entre nós", uma condição que as caricaturas começaram por eliminar. Corre-se, aliás, um outro risco: o de a reacção nos caricaturar a nós próprios e nos ofender literalmente (até porque atingidos em pessoas e bens).A contestação gerada pelas caricaturas dinamarquesas veio repor no centro do debate a questão de saber quem somos "nós" e quem são "os outros". Quando há cem anos proliferavam as caricaturas anti-semitas, a reacção dos progressistas, de que hoje nos honramos, era de que os traços das caricaturas sublinhavam que os judeus eram "outros", quando afinal eles eram parte de "nós". Tragicamente, não foi esta a posição que prevaleceu. Tal como então, o "nós" das caricaturas dinamarquesas é uma visão muito selectiva da sociedade europeia ocidental, contraposta a uma visão igualmente selectiva da sociedade islâmica. Ou seja, jogam na distância entre elas e sublinham-na. Ora, a verdade é que a Europa é hoje multicultural e que em muitos países que a compõem há minorias islâmicas significativas, o mundo islâmico interior. Estas minorias são parte de "nós" com todas as diferenças que reivindicam. Reivindicam simultaneamente o direito à igualdade e o direito ao reconhecimento da diferença. E que são parte de "nós" prova-o as reacções das comunidades islâmicas na Europa: foram qualitativamente diferentes das que tiveram lugar no mundo islâmico exterior.Em relação a este último, as caricaturas representam uma dupla afronta: estigmatizam as suas diferenças em relação à Europa e silenciam o mundo islâmico interior, de que se sentem irmãos. Ao contrário deste último, o mundo islâmico exterior não se vê forçado a reagir segundo os códigos de reacção da Europa, até porque a Europa das caricaturas o caracteriza como incapaz de o fazer. Se o fizesse, estaria a auto-caricaturar-se segundo a norma europeia. As diferenças das reacções são uma primeira lição a tirar deste incidente. O mundo islâmico interior conhece e vive uma Europa contraditória: a Europa imperial e discriminatória, mas também a Europa da liberdade e da democracia, sobretudo do Estado Providência, da educação, saúde e segurança social públicas. Ao contrário, o mundo islâmico exterior só conhece da Europa e dos seus aliados a guerra da agressão, a pilhagem dos recursos naturais, a demonização da sua cultura, a inacção ante o terrorismo de Estado de Israel, a humilhação diária nos aeroportos e universidades europeias. A segunda lição é que os universalismos da Europa das caricaturas (incluindo o da liberdade de expressão) sempre foram falsos e só foram accionados quando conveio. Ao mesmo tempo, os mesmos países que garantiam os direitos aos trabalhadores europeus, sujeitavam os trabalhadores coloniais ao trabalho forçado. Os opressores esquecem facilmente a sua dualidade; os oprimidos não, porque ela está inscrita no sofrimento do corpo e da alma."

Boaventura de Sousa Santos