Eu não simpatizo particularmente com a calçada dita portuguesa. Irrito-me com o discurso proteccionista glorificador da dita forma de pavimentação que, vá-se lá saber porquê, não tem paralelo em nenhum outro lugar do mundo. Talvez no resto do mundo, quando pesados os benefícios de uma coisa semelhante, se tenham apercebido que para além do seu, por vezes discutível, encanto visual a dita coisa acumula desvantagens umas em cima das outras. É de uma disfuncionalidade tremenda, propensa a acidentes de toda a espécie, escorregadelas e tropeções e ainda por cima é imprópria para a circulação de carrinhos de bebé, cadeiras de rodas, muletas, bengalas e demais utensílios de apoio à mobilidade assistida. Para além do mais é uma forma de pavimentação extraordinariamente dispendiosa, quer pelos materiais envolvidos, quer pelo custo associado à especialização dos operários que colocam a dita, os calceteiros.
Os defensores da calçada remetem a sua argumentação para o carácter artístico e histórico da coisa. Vejamos então a história da calçada portuguesa: resumidamente é uma invenção ou melhor um revivalismo adaptado à matéria-prima disponível das calçadas romanas, levado a cabo por um oficial do exército português no último quartel do século XIX. Engenheiro de formação e de arma o dito senhor era na altura o responsável pela direcção da prisão que existia no espaço onde hoje se situa o Castelo de S. Jorge (sim, o castelo conforme o conhecemos hoje não estava lá na altura). Observando a parada de terra batida do quartel/prisão este admirador das edificações romanas, lembrou-se de pôr os prisioneiros literalmente a partir pedra – calcária sobretudo, uma vez que as pedreiras de calcário eram mais que muitas na cintura exterior da Lisboa de então – e ao fim de algum tempo de trabalhos a parada estava calcetada. A inauguração do espaço mereceu pompa e circunstância, o autarca da época gostou muito da ideia de maneira que lá foram os prisioneiros calceteiros por essa cidade fora calcetando (à borla) o Rossio, a Praça da Figueira and soi on and soi on. Tinha nascido um produto genuinamente português, único no mundo. Cento e tal anos depois o país está calcetado de norte a sul.
Diz-se que a profissão de calceteiro tem vindo a morrer, acompanhando a falta de candidatos dispostos a suportar a dureza do trabalho (não nos podemos esquecer que na génese está um trabalho forçado, por definição e suponho que não por acaso, penoso). A Câmara de Lisboa tem uma escola de calceteiros e lá vai formando jovens – regra geral de meios desfavorecidos – no ofício.
Pela minha parte e porque acho que as tradições só são boas quando não são más, aguardo que um destes dias uma qualquer directiva comunitária – as mesmas que põem os tipos da ASAE a tomar de assalto, com direito a passa-montanhas e tudo, as bancas dos feirantes vendedores de queijos, azeitonas e tremoços – decrete em definitivo a disfuncionalidade e perigosidade deste pavimento para utilização em zonas de tráfego pedonal intenso e o relegue para áreas específicas, como zonas históricas, envolventes de monumentos e afins.