A rua comprida

Por debaixo do alcatrão recém colocado e ainda pegajoso ficaram os carris por onde os eléctricos costumavam passar. Sem préstimo, continuavam polidos e brilhantes pela acção dos automóveis que dia após dia, num fluxo constante, sobem e descem a rua.
Sobre o negro petróleo, ainda sem pinceladas brancas intermitentes, sobrepõem-se as cores diferentes de gentes igualmente diferentes, partilhando o espaço por onde os seus quotidianos vão fluindo. Há os que caminham apressados com destino definido, os que passam devagar, sem pressa, os que vagueiam perdidos à procura da oportunidade certa para se encontrarem, para ficarem e os que, fazendo da rua a sua morada, já não a abandonam nem trilham outros caminhos que não os diariamente repetidos.
Por aqui se matam as fomes. Os que por cá ficam fazem-no na certeza ou na esperança da saciedade.
À fome do outro, de alguém, seja quem for, serve-se um simulacro de amor pago com uma ou duas notas das pequenas. Para os que sentem a fome na alma a igreja ergue-se no centro do jardim, resistente ao tempo e aos servidores de outros deuses ou de deus nenhum que lhe inundam a escadaria e lhe mijam as paredes. Por toda a rua se mata a fome dos que têm sempre fome do pó maldito.
Mais acima mata-se o fastio que ronca nos estômagos de bolsos vazios e pés descalços.
Na rua comprida, comprida demais.